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O Poço e as relações entre religião e política




O filme O Poço foi uma obra que me surpreendeu positivamente. Eu assisti ao trailer e pensei “ah é só mais um filme ‘crítica social foda’ né”, mas como vi que tinha gente falando bem dei uma chance e achei o filme realmente muito bom. A trama do filme é sobre um tipo de prisão em diversos níveis, cada nível com 2 prisioneiros, em que a única comida que recebem é um banquete que desce por uma plataforma flutuante, descendo lentamente andar por andar. Acontece que nos primeiros andares é possível se fartar com o banquete, enquanto nos últimos não sobra nada mais e as pessoas passam fome. Periodicamente as pessoas são trocadas de andar (parece que a cada mês, e a troca parece aleatória) e aí elas têm uma experiência bem diferente, cada pessoa passando pelas diversas situações. Muitos quando estão nos andares mais baixos não aguentam a tortura de ficar sem comida, e aí ocorrem suicídios, ou mesmo canibalismo, em que um colega de cela mata o outro para comer. Cada prisioneiro tem direito a escolher uma coisa, um objeto qualquer que os acompanhará, e o protagonista escolhe um livro, o Dom Quixote, que é uma referência importante para a trama.

Dito isso preciso elogiar que o filme consegue fazer uma alegoria interessante sobre a desigualdade social, em que os que tem privilégios, recebem primeiro o banquete, inclusive oprimem os de baixo da forma que podem, pois sabem que quando estiverem em baixo também serão oprimidos. Acaba que o filme propicia reflexões interessantes sobre política e religiosidade, porque o filme também faz muitas alegorias e simbolismo com religião. E a partir daqui, pra falar melhor sobre isso vou dar spoiler pesados, então recomendo que assistam o filme e depois terminem de ler.

O filme com sua alegoria de estratificação, com os andares definindo privilégios, monta uma situação em que quem está em cima tem poder sobre o de baixo. Quem está a cima pode cuspir ou mesmo urinar na comida dos outros. Como o buraco fica aberto, é possível também urinar pra baixo na cela do outro, e vemos no filme cena de pessoas literalmente defecando em que está abaixo, e mesmo ameaças de fazê-lo. A alegoria é interessante e poderosa, mas me parece que o filme a usa para uma narrativa simplista sobre a política. As classes sociais são mais ou menos estáticas (apesar de variarem no período do mês), e é impossível subir ou quem está abaixo afetar o de cima – ainda que seja possível descer na classe social, como uma personagem fez com frequência. Não funciona bem essa parte da alegoria para simbolizar nossas sociedades reais, em que é possível dentro de certos limites ascender socialmente (embora no Brasil menos que em outras democracias). Também não funciona a ideia de que quem está abaixo não tem poder sobre quem está acima. E isso é bem básico na política, de que é possível exercer pressão popular, ameaçar revoluções ou as fazer, e isso sempre limitou os poderes do soberano, mesmo nas sociedades mais desiguais. Também não funciona a ideia de que as pessoas dos andares mais baixo não tem nada, nada mesmo, pois na nossa sociedade o que mantém as pessoas aceitando sua condição na classe baixa é justamente o fato de terem mais do que conseguiriam sozinhas na natureza. Como eu tenho uma visão contratualista, inclusive não faz para mim muito sentido o lugar ser uma prisão, já que as pessoas aceitam de bom grado o “contrato social” justamente porque nele elas tem mais benefícios do que no “estado de natureza”. Feitas essas ressalvas, a alegoria do filme permite longas reflexões sobre estratificação social.

Um ponto marcante do filme é o retrato do papel da política e da religião na sociedade. As pessoas se diferenciam por religiões, é falado em certo momento que existem muçulmanos, e implicado em um momento que o motivo de um personagem prejudicar outro é pela religião diferente. Também existe um simbolismo religioso muito forte, e o papel da crença nos personagens. Ao mesmo tempo existe um elemento político, tanto nas relações das pessoas, quanto nas posturas políticas de cada uma. O filme mostra o protagonista e por ele passam diferentes colegas de cela, mostrando outras visões políticas que contrastam a dele. É interessante que o objeto que cada um escolhe (o que era possível levar para a cela) se relaciona com sua personalidade e visão política. O protagonista é um sonhador ingênuo, que não pertence àquele lugar (diferente da maioria dos prisioneiros, ele entrou de modo voluntário), ele começa alheio a tudo, sem notar aquela realidade, mas logo se sensibiliza e quer ajudar a todos, quer que todos tenham comida, e se mostra inconformado com aquele sistema, e ele carrega um livro – e não qualquer livro, mas o Dom Quixote, sobre um sonhador que não enxerga a realidade – e pretende apenas cumprir os seus 6 meses e tentar ajudar os que estão lá. O seu primeiro companheiro de cela é um cínico pragmático que apenas aceita as coisas como são, e quer mostrar para o colega ingênuo as coisas que são “óbvio” (seu jargão pessoal), mostra o papel de um conservador, que aceita as coisas como são de um modo até cruel, e seu objeto é uma faca, ou seja, uma arma para usar contra os outros (que termina por usar contra o protagonista). A segunda é uma funcionária do próprio Poço (que entrou também voluntariamente como prisioneira), ela acredita que este sistema é justo, que ele pode incentivar solidariedade voluntária, ela quer convencer as pessoas a deixar comida para os de baixo, e ela mostra o papel de uma solidária conformada, ela quer o melhor para os outros mas acredita cegamente no sistema, e seu objeto é seu cachorro (e vale ser vivo?), o que parece taxar ela meio como “madame” ou algo assim, a pessoa que tem privilégios e acha que tudo pode estar bom para todos apenas com boa vontade (e o filme mostra que ela estava errada). O terceiro é o religioso/revolucionário, seu objeto é a corda, que simboliza a ascensão social, ele começa com uma visão de ascensão com a ajuda de Deus, convencendo os outros a ajudarem ele a subir segurando a corda, dizendo que creem no mesmo Deus, porém tentativa se frustra pelos outros o discriminarem e não o ajudarem a subir, e ele perde a sua corda, jogada no poço por eles. É curioso notar que nesse terceiro a sua postura de fé na possibilidade de ascensão acaba e então o protagonista – já bastante desacreditado do sistema – o convence a descer com o elevador para levar comida a todos, tornando ele o revolucionário. É muito curiosa a simbologia de ele se torna revolucionário por perder a corda (que representa a perspectiva de ascensão social).

Com esse retrato das 3 atitudes políticas a alegoria se desenha mais claramente em um comentário político sobre nossa sociedade. O filme não apenas critica o conservador, mostra sua crueldade, mas também critica pesadamente a pessoa solidária que acredita no sistema. Isso fica claro por ela dizer que o Poço só tem 200 andares, e que existe por isso comida para todos, e depois quando ela e o protagonista acordam no andar 202 (e com ainda muitos incontáveis abaixo) ela se suicida, simbolizando a morte de sua crença também. Desse modo o filme pinta um sistema social (o nosso) inerentemente injusto e incapaz de suprir a todos, e a crença nesse sistema como sendo tola. Será esse o caso? Ora, ninguém nega que existem sim injustiças, mas não se pode esquecer o passado, a história, e ver que a situação do mundo melhorou muito, principalmente nas democracias representativas. Esse nosso sistema democrático atual tem problemas, mas está longe de ser aquele mundo fatalmente injusto, que talvez combinasse, sei lá, com como era o mundo medieval. É possível também tomar os dados e ver o quanto as condições de vida no mundo melhoraram abundantemente nas últimas décadas. Para não me alongar sobre isso, posso recomendar as palestras do Steven Pinker sobre o assunto, facilmente achadas na internet. Vale lembrar também que a oferta mundial de comida (o foco do filme) melhorou absurdamente com o avanço tecnológico, e que hoje a imensa maioria da população mundial não passa fome, bem diferente do que era coisa de 100 anos atrás, por exemplo. Então, essa visão fatalista, de um sistema incurável que só traz desgraça, também não é uma alegoria que encaixa bem com nosso mundo. Mas essa alegoria se encaixa muito bem na visão de mundo religiosa que o filme carrega.

Outro comentário interessante do filme é sobre a leviandade das revoluções. Quando dois homens em situação de privilégio (o 6º andar) decidem mudar aquele sistema, e impor a divisão de comida pela força (um deles já desacreditado do sistema, e o outro decepcionado por não conseguir a ascensão social que a religião prometeu), eles se veem numa situação curiosa. Eles agem com violência contra várias pessoas, as agridem e matam algumas, são agressivos e pouco dialogam. Isso até um “homem sábio” apontar o erro deles, e dizer que eles precisam acima de tudo dialogar melhor e levar uma mensagem, que o importante é a mensagem. Essa situação toda mostra a postura do revolucionário na sociedade, a sua falta de diálogo básico para que os outros entendam suas intenções, e mesmo depois o filme coroa com a limitação de sua causa: a revolução aparentemente falha, pois não tem comida para os últimos andares, e parece que a mensagem não é passada.

Nesse ponto, precisamos passar pela interpretação do final. O final é bem aberto e simbólico, com um forte simbolismo religioso. Para simplificar esse texto, vou dizer apenas a interpretação que eu concordo, e analisar a partir daí. Uma chave de leitura essencial para entender esse filme é compreender que ele é uma analogia com a obra mostrada, do Dom Quixote. O protagonista é justamente o Dom Quixote, o sonhador, que se engana numa missão sem sentido. Isso também é interessante porque mostra a falta de sentido da revolução dele, que seria apenas lutar contra moinhos de vento, como na clássica história o herói faz. O importante de ele ser Dom Quixote é porque esse imaginava coisas que não existiam. E o protagonista também o faz imaginando os colegas mortos, tendo sonhos com a mulher que desce a plataforma (que seria a sua Dulcinéia de Dom Quixote). Com essa noção caímos na interpretação do final em que a garota não existia, primeiro porque já tinha sido dito pra ele que ela não existia, que a mulher que descia era mentirosa e fantasiava aquilo, e segundo porque a menina, criança, representava justamente a pureza da amada dele, que ela falava a verdade, representado na sua forma simbólica de ela como uma criança pura, limpa e com boa aparência (apesar das condições horríveis do último andar) e isso também explica porque ela era uma menina, quando a história dizia que era um menino.

A menina não existindo, podemos supor que ele deixa a sobremesa para subir na plataforma. E essa é a mensagem que chega lá em cima. Porém a gente já viu essa mensagem chegando. Ela chega bem disfarçada no começo do filme, fora de ordem cronológica. O doce chega intacto (o exato mesmo doce) e o chefe da cozinha interpreta que ele assim chegou apenas porque tinha um cabelo nele e ninguém quis comer, brigando com seus funcionários. Ou seja, a mensagem foi perdida. Mas será que foi? É importante que isso não seja o final da história, o final da história é outro, de ele cumprindo sua missão e enviando a mensagem, que era uma criança que não existe. A mensagem é clara: o sistema é injusto, corrompido. Ora não se previa que podiam ter crianças lá, ela estando lá é o símbolo maior da fraqueza moral do mundo, de sua natureza pecadora (a escolha de palavra é intencional). E se ela não existia, então pra quem aquela mensagem foi mandada? Já vimos que não foi para os cozinheiros. Ela foi mandada para quem está acima daquilo tudo, para o andar 0, para quem apenas observa tudo de fora. Quem são esses senão nós mesmo, assistindo o filme? A mensagem foi dada, porque você viu o filme e entendeu que o sistema e injusto, não só o daquele mundo, como do nosso.

Tomando como clara então essa mensagem final do filme, consolidamos a narrativa de um mundo fatalista. Nada o salva, nem a boa vontade da segunda companheira que acreditava no sistema, nem ascensão social da corda, e nem revolução do terceiro companheiro (estaria então o primeiro companheiro certo e restaria ser conservador e cínico?). Eu achei esse filme bastante proveitoso por misturar assim dessa forma política e religião, porque ele ajuda a evidenciar algo que a muito eu reparo em várias instâncias do debate público. Que a visão de mundo progressista supostamente secular (e mesmo crítica da religião) sem perceber é profundamente influenciada por uma visão religiosa enraizada. Isso é uma constante no debate, e já começa no fato de ver o mundo como algo profundamente corrompido, a sociedade como tendo o que se poderia mesmo chamar de uma “natureza pecadora”, algo que precisa de uma salvação moral, que é justamente o que a mensagem do filme prega com mais força. Porque não ver que nosso mundo permite ascensão social? Porque não ver que salvo raras exceções quase todos não passam fome (atualmente)? Porque não ver a melhora histórica significativa nas condições de vida? Ora, porque existe uma narrativa religiosa, uma visão de que esse mundo não pode ser de modo algum bom, porque este não é o mundo para isso. Nesse sentido não é coincidência que no filme o religioso mais fervoroso é o mesmo que se torna o revolucionário, porque ambos acreditam num mundo que não é este, numa utopia, num devir, em algo incompatível com esse mundo, e que pouco consegue se relacionar com ele. É a influência despercebida da cultura religiosa no pensamento progressista. Do mesmo modo é bem comum que o progressista típico acredite ter algum tipo de “pecado original” que precisa sofrer para purgar. No nosso mundo atual a “culpa cristã” se tornou o “desculpa por ser homem”, a “culpa do branco”. Com essa crítica eu não estou de modo algum apontando que ser progressista é errado (eu mesmo o sou), e nem negando que existam privilégios pela condição que se nasce. Eu estou apenas apontando que a atitude que se escolhe ter em relação a esses é a atitude típica cristã, impregnada em nossa cultura. E isso o filme mostra bem.

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