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As polêmicas em torno de The Last Of Us 2


Nos últimos dias eu tive muitos enjoos fortes inexplicáveis e não estava conseguindo fazer nada de produtivo na minha quarentena. O mal-estar me deixava sem disposição nenhuma para estudar, etc. Então aproveitei a situação para fazer algo mais passivo. Estava sabendo de toda uma polêmica em torno do lançamento do jogo da Naughty Dog, sequência do jogo bastante popular The Last of Us. Peguei então para assistir no Youtube a gameplay completa do jogo para avaliar ele (não tenho o console, e talvez se fosse eu mesmo jogando nem ia ter disposição de jogar tudo por conta dos enjoos) e para ver o que tinha de certo e de errado na polêmica. Depois de completar o jogo, vim então trazer aqui o meu review de espectador. Gostei muito do jogo e vou defendê-lo aqui, porém vou mostrar que existem sim críticas que podem ser feitas a ele que não passam apenas por preconceito.  Vou tentar começar o texto sem spoilers do jogo, e depois vou me aprofundar mais no enredo e avisar que será uma parte com spoilers.

O ódio ao jogo é todo motivado por ódio as causas LGBT?

Primeiramente a questão da recepção do jogo. O The Last of Us 2 teve uma recepção bastante dividida. De um lado alguns elogiaram muito o jogo, e de outro o rejeitam totalmente. Essa recepção pode ser notada por exemplo nas avaliações do jogo. Embora na crítica especializada o jogo tenha recebido notas altíssimas (95/100), ao mesmo tempo as avaliações pelo público receberam muitas críticas negativas e foram muito baixas (3.9/10). Pareceu haver mesmo uma iniciativa de insatisfeitos de negativação em massa, e se suspeita se muitos de fato jogaram o jogo para avaliar [1]. Desde antes do lançamento do jogo, ele já sofria diversas críticas, e é frequentemente apontado que essas críticas são baseadas em preconceito. Isso porque o jogo apresenta diversos personagens LBGT ou ao menos fora dos padrões (como uma mulher muito musculosa). Parte dos fãs da franquia se revoltaram com isso e virou até um apelido para o jogo se referir a ele como um mero “lacre” (ao invés de “Last”). Mas será que toda crítica se resume a preconceito?

É difícil não admitir que ao menos parte dessas críticas possam sim ser motivados por esse tipo de sentimento. Tanto por algumas reclamações do próprio público como por algumas de suas atitudes. Mostra ao menos algum tipo de ódio e motivação preconceituosa quando uma multidão de fãs da franquia perseguem e atacam a mulher que foi o modelo usado para o rosto da personagem Abby [2] (EDIT: Aparentemente eu caí em uma fake news nesse ponto, e embora muitos sites de notícia estivessem divulgando, a própria funcionária em questão desmentiu) . Costumo considerar inapropriada qualquer perseguição de internet assim, mesmo que não motivada por preconceito, afinal não cabe entregar pessoas para serem linchadas pela massa, mas se alguém cometeu algo errado deve responder por isso legalmente e não nas mãos de justiceiros tomando a si mesmos como se fossem a lei. Agora perseguir atores e modelos por sua participação em obras que não se gosta passa todas as fronteiras do absurdo, e não é a primeira vez que fãs nerds fizeram isso, já que fizeram o mesmo com a atriz Kelly Marie Tran, que interpretou a Rose em Star Wars [3]. Claro, provavelmente muitos dos que rejeitam o novo jogo não chegariam ao ponto de participar de uma perseguição assim como esses mais extremistas. Mas é muito urgente que haja críticas sobre o ponto em que o comportamento de fãs pode chegar.

Algumas reclamações que vejo serem feitas por fãs são sobre terem feito as personagens mulheres todas muito masculinizadas, sem seios evidentes, uma antagonista exageradamente musculosa, além de reclamarem muito sobre o fato de os desenvolvedores terem diminuído intencionalmente os seios da atriz que serviu de base para Dina – me parece que poderia ser algo problemático não aceitar o corpo natural da atriz, mas a explicação para isso pode ser mais simples, de que eles apenas usaram ela como modelo facial e não de corpo, do mesmo modo que fizeram com a modelo de rosto da Abby – e além disso tudo também muitos fãs parecem desgostosos com a influência que Anita Sarkesian teve no jogo [4], e a culpam por arruiná-lo, já que ela é uma antiga “inimiga” da comunidade gamer masculina.

A minha posição pessoal sobre esse tipo de crítica é que ela é equivocada, exagerada e injusta. Ainda que eu não consiga ver algo de exatamente ruim em gamers homens quererem de vez em quando um fan service, que se agradem com uns seios de personagens, ainda assim me parece algo equivocado que se espere que isso sempre aconteça e que se enfureçam quando não acontece. Por mais que fãs se apeguem a uma franquia ninguém é dono daquela história a não ser a empresa e os diretores criativos. A empresa parece ter tomado uma decisão interessante de fazer uma obra mais inclusiva, e representar as mulheres de um modo diferente, e eles tem todo o direito de fazer isso com sua obra. Eu penso ser positivo esse tipo de representação menos convencional em um jogo AAA, é algo bom para dar visibilidade ao fato de existirem tipos diferentes de mulheres, e me parece algo mimado rejeitar que isso seja feito sem um bom motivo. Ainda mais quanto já existem tantos outros jogos que são lançados que já fazem esse tipo de fan service, não é como se isso estivesse em falta. Do ponto de vista de mercado, é mais interessante que uma obra seja atrativa para diversos públicos diferentes, e que consiga fazer sucesso entre mulheres que querem esse tipo de representação. Isso tem muito a somar na comunidade gamer, não é uma perda.

Mas seriam essas todas as reclamações sobre o jogo? Ou existem críticas que não se baseiam na rejeição de representação feminina e LGBT, e da falta de fan service? Sim, existem diversas críticas que são feitas também por outros motivos bastante diversos. Muitos fãs criticam as falhas de roteiros, e criticam situações em que o jogo força o jogador em situações desconfortáveis. Também criticam a forma como a história teria desrespeitado o Joel e seu legado. Eu primeiramente quero dizer que considero algumas dessas críticas bastante válidas e compreensíveis, ainda que eu vá discordar de muitas. O jogo realmente apresenta essas características e mesmo alguns problemas de roteiro. Mas nesse ponto já é impossível trabalhar o assunto sem adentrar em spoilers da trama. Assim a partir dessa próxima seção será a avaliação com spoilers.

As polêmicas com o roteiro do jogo

Uma crítica que eu ouvi bastante seria que o roteiro não apenas teria sido insensível pela morte violenta de Joel, personagem muito amado pelo público, como também que ele teria desrespeitado a sua memória. O fato é que logo no começo do jogo temos uma experiência algo estranha. Nós controlamos a antagonista do jogo, Abby, enquanto ela caça um alvo. Ela acaba por coincidência se encontrando com Joel, e pouco depois ainda no começo do jogo nós temos a cena em que a Abby mata o Joel violentamente. Isso causa uma estranheza de que “nossa, mas eu joguei com ela...”. E ok, depois do assassinato você volta a controlar Ellie e sai numa jornada procurando a Abby por vingança. Nessa jornada Ellie está tomada pela raiva, e por vezes podemos ver isso na expressão dela. Você mata inúmeros companheiros do grupo da Abby (os “Lobos”, ou WLF). A própria Ellie parece ter alguma consciência do estado em que a morte do Joel a deixou, quando num momento tocante vemos ela cantando ao violão a música que ele lhe ensinou Future Days “If I ever were to lose you, I’d surely lose myself”. De fato, o jogo nos mostra uma Ellie entregue à raiva e a vingança. Em sua pele nós matamos muitas pessoas para tentar chegar a Abby. Em certo ponto temos que matar um cão de guarda, e um casal de amigos da Abby. E própria Ellie se sente muito mal ao perceber que a mulher que ela tinha matado estava grávida. Tudo nos conduz àquilo, a revolta (que também sentimos pela morte de Joel), os acontecimentos. Tudo faz muito sentido, como faria sentido em qualquer jogo de ação parecido, com matança, etc. Mas esse mostra que não é qualquer jogo.

Em certo ponto há uma grande reviravolta. Ellie finalmente entra em confronto com a Abby, que aparece atrás dela por ela ter matado seus amigos. No auge do conflito, companheiros mortos, Abby rende Ellie e seus amigos. Quando tudo chega ao limite, Ellie desarmada, e Abby aponta a sua arma furiosamente prestes a matá-la. Expectativa, tensão, e o que acontece? Acontece que muda a cena do jogo, voltamos no passado, e estamos novamente controlando a Abby!

É bastante chocante para muitos jogadores (e eu pude ver a angústia do streamer que eu assistia) o fato de controlar novamente a assassina do Joel, depois de assistirmos ela matá-lo de modo cruel. Esse é o principal ponto que atiça a raiva de muitos fãs. Sentem um desrespeito com o Joel, e mesmo com seus próprios sentimentos, que o jogo os obrigue a jogar com essa personagem que enxergam desse modo negativo. E não é algo breve. O jogo nos faz controlar ela por quase metade de toda a história, boa parte do resto do jogo. Isso com certeza contribuiu muito para o ódio de muitos fãs ressentidos.

Além disso, nós somos guiados a entender as motivações de Abby. Conhecemos seu pai que ela amava. Descobrimos que seu pai era o médico/pesquisador que é morto por Joel no final do primeiro jogo (aquele que queria usar a Ellie para fazer a cura). Do ponto de vista da Abby a coisa toda faz tanto sentido quanto faz para Ellie. Percebemos o quanto ambas são parecidas. Ambas mulheres guiadas pela vingança, pela morte de um pai. Mas no caro de Abby existem até mais justificativas. Joel não é apenas o homem que matou seu pai injustamente, mas também o homem que com esse assassinato condenou toda a humanidade. Joel teve uma escolha ética [5], salvar a vida de uma criança inocente que ele amava como filha, mas se o fizesse condenar toda a humanidade sem cura. Ele escolheu a Ellie. Do ponto de vista de Abby ele era não apenas o algoz de seu pai, mas de toda a humanidade. E por isso procurá-lo e matá-lo. Abby parece ter dedicado boa parte de sua vida em busca disso (talvez por isso treinou para ficar tão musculosa).

Seguindo o jogo ainda nessa nova protagonista, o jogo nos mostra o outro lado da história de muitas formas. Mostra que os soldados que matávamos tinham toda uma comunidade, um modo de vida. Embora tenham também alguns líderes questionáveis nós acabamos testemunhando eles como pessoas legais, vemos seu lado amigável. Vemos de perto os dois amigos de Abby que matamos (a grávida e o outro que era interesse amoroso de Abby também). E também vemos seu cão de guarda, fofo, amigável, o mesmo que o jogo nos força a matar mais cedo. Tudo isso proporciona a possibilidade de olhar o outro lado, mas também nos faz sentir mal com nós mesmos, com “nós” enquanto Ellie em nossa fúria vingativa, atropelando todas aquelas pessoas.  

Isso me parece ter sido o principal choque e desconforto para muitos fãs. Eles sentem um desrespeito pelo o jogo os forçar nessa situação. Além disso os fãs apontam falhas de roteiro, como coincidências convenientes e personagens incoerentes. Aí entram acontecimentos como Abby achando Joel no começo, ou pelo Joel baixar a aguarda e se colocar vulnerável em território hostil, e ainda por personagens cuja única motivação é vingança terem mudado de ideia e perdoado. Olhando desse modo o jogo parece bastante insensível e coloca pontos bem questionáveis em seu roteiro. Mas será que isso torna o jogo ruim? Ele deveria ter agradado mais os fãs?

Toda história tem dois lados

Certamente o jogos nos coloca em uma situação desconfortável. Mas isso não é necessariamente ruim. Um jogo, uma história, não tem que ter necessariamente um conteúdo agradável, relaxante, divertido. Histórias de terror por exemplo nós deixam com tensão e gostamos delas por isso. Certamente o desconforto que The Last Of Us 2 causa é intencional, e faz parte da experiência que o jogo proporciona. O jogo nos leva a uma situação muito comum de jogos de ação, de nos apresentar uma motivação para matar várias pessoas, para extravasar a raiva em inimigos, e então ele dá uma virada e nos faz questionar essa posição em que estávamos. E isso é genial. “Não seríamos nós os vilões?” a gente poderia pensar. De fato, da perspectiva da Abby nós enfrentamos a Ellie como um boss, e ela é assustadora. Mas a história na verdade não tem exatamente heróis e vilões. Ela nos mostra que tudo tem dois lados. A Abby certamente enxergava no Joel e na Ellie os verdadeiros vilões. E talvez ela tivesse até mais razão que a Ellie, já que enquanto a Ellie tinha “Ela matou meu pai” a Abby tinha “ele matou meu pai e condenou a humanidade”. Porém de ambos os lados nós vemos histórias semelhantes, porque ambas histórias motivadas por vingança

E a história toda é uma grande reflexão sobre a vingança. Não apenas é o motor do jogo, mas também é o elemento que é problematizado, que é mostrado não de uma forma simplista que se esperaria, mas em todas as suas consequências. Abby era obcecada em se se vingar de Joel, mas isso trouxe desgraça para seu grupo, fez com que fossem caçados e mortos aos montes pelo grupo da Ellie, e inclusive a fez perder seus amigos mais próximos. Já Ellie em sua vingança é derrotada, perde também amigos, e ao tentar retomar sua vingança depois acaba perdendo seu relacionamento (escolhe a vingança ao invés da família e a Dina a deixa). Mais ainda a Ellie perde até suas lembranças. Num final bem significativo, depois de acabado tudo ele pega o violão para tentar tocar a música de Joel, mas não consegue porque perdeu dois dedos na última luta.

Um ponto parecido também nas duas protagonistas é que ambas apesar de serem movidas pela vingança, na hora final decidem não concluir, não se vingar (e isso é apontado como alguns até como inconsistência das personagens). Abby poupa a Ellie, e depois no futuro a Ellie também poupa a Abby. Por muito tempo a Ellie só conseguia lembrar da morte de Joel, mas no momento final, quando estava prestes a matar Abby, ela lembra do momento de sua reconciliação com ele, em que ela começava a perdoar o pai. O final da história é realmente emocionante, a trama leva as duas até o limite, mostra como as suas jornadas acaba com elas.

Embora assuste que a história nos coloque na estranha posição de ser a antagonista que antes odiamos, não penso que isso seja um ponto negativo do jogo, simplesmente porque isso não é mal feito, não é banal. A personagem da Abby realmente é bem desenvolvida, bem apresentada. A situação que parece estranha é colocada na prática de forma bem feita. Assistir ao gameplay do jogo foi mesmo uma experiência incrível, do tipo que raramente um game nos proporciona. Foi como assistir uma longa série ou filme. E eu só poderia recomendar que as pessoas tentassem superar a antipatia pelo jogo e tentassem ter essa experiência também.


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[1] https://observatoriodegames.uol.com.br/noticias/estao-apedrejando-the-last-of-us-2-nas-reviews

[2] https://observatoriodegames.uol.com.br/noticias/the-last-of-us-2-modelo-facial-de-abby-tem-sofrido-ataques-na-internet


[5] Meu texto sobre o assunto na página de filosofia: https://www.facebook.com/filosofiaemtudo/posts/140812947626244

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