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Manifestações antirracismo e destruição de patrimônio: uma reflexão política

Nos últimos dias os conflitos sociais têm se intensificado. Já tem meses que o clima de conflito ocorre pela trajetória ainda forte da nova extrema direita (e a necessidade de se opor a ela), em conjunto com os problemas causados pela pandemia. De modo geral, no Brasil e no mundo, essa nova direita tendeu a ser irresponsável frente a pandemia, e aqui o Bolsonaro em especial teve um nível de irresponsabilidade absurdo e incomparável. Ainda assim, não se podia combate-lo propriamente, em decorrência da necessidade de acatar a pandemia, do cuidado com a saúde pública. Mas isso mudou.

                Nos EUA a gota d’água foi com o assassinato de George Floyd. Um homem capturado pela polícia em condições degradantes e assassinado (após o policial ficar mais de oito minutos ajoelhado no pescoço dele, ele faleceu), tudo isso por um suposto crime leve, de tentar passar nota falsa. O ocorrido estourou uma onda de protestos nos EUA, contra o recorrente assassinato de negros pela polícia. O caso chocou porque foi filmado, e as palavras de George foram ecoadas pelo protesto: “Eu não consigo respirar”. Depois disso, em adesão a protestos nos EUA começaram protestos também aqui no Brasil, que além de protestos antirracismo, também acabaram fortalecendo protestos contra o Bolsonaro e a favor da democracia de modo geral.

                A polêmica acendeu conforme grupos progressistas tomaram as ruas no meio da pandemia, e conforme os protestos tiveram por vezes resultados violentos, destruindo prédios públicos, e em alguns casos saqueando comércios, inclusive pequenos comércios de propriedade de gente também do povo que precisa pagar contas.

                Vou aqui nesse texto discorrer sobre esses casos e trazer uma reflexão sobre o papel desses protestos e suas consequências.

Sobre a necessidade da defesa da vida dos negros

                Primeiramente, sinto que estamos numa época que é preciso defender pautas óbvias, então vou apontar logo de cara: “vidas negras importam”.  O lema é de movimentos negros dos EUA, uma defesa do respeito do direito à vida de populações negras. Críticos costumam rebater que “todas as vidas importam”. Essa resposta é um espantalho, porque interpreta como se o lema anunciasse que apenas as vidas negras importam, quando o que a ideia quer colocar é que “vidas negras também importam”. Os dados, estatísticas, nos mostram que os jovens negros são frequentemente assassinados pela polícia. Isso é verdade nos EUA e é principalmente verdade aqui. No Brasil temos casos recorrentes de jovens assassinados e a justiça apenas presume que são bandidos em confronto. Em outros casos, também frequentes, pessoas obviamente inocentes são mortas, ou acidentalmente (balas perdidas em tiroteios) ou numa ação irresponsável da polícia, e temos alguns casos de crianças mortas, de um pai de família, etc. Não pretendo nesse texto enumerar casos e dar as condolências merecidas, pois muitas já foram dadas e o foco aqui é uma reflexão mais geral. Ainda assim é importante ter em mente que não se trata de uma discussão meramente abstrata ou de números, mas são vidas destruídas, pessoas que eram amadas por alguém.

                Numa sociedade democrática, num Estado de Direito, nós temos alguns pressupostos (valores e princípios políticos) que tornam essa situação absurda e inaceitável. A ideia de um Estado de Direito é a de uma organização social regida pela lei. Ninguém está acima da lei, nem os governantes, nem as forças policiais, e esses devem acatar a ela. Quando um jovem é assassinado pela polícia, que é uma força estatal, nós temos alguns problemas. Primeiramente porque nossa legislação não prevê em situação normal a possibilidade de pena de morte (ela existe apenas em situação de guerra), e dado ela não existir não é aceitável em hipótese alguma que as forças executivas do Estado (policiais) matem criminosos. Muitos no Brasil, revoltados com a violência da criminalidade costumam ter esse tipo de anseio, querer os criminosos mortos como que numa solução fácil. Independente dos seus valores sobre isso, de seus anseios, isso não é permitido em nosso direito, e se querem tal coisa numa sociedade democrática o caminho é defender uma mudança de lei (e seria necessário da própria constituição), mas nunca aceitar que se faça isso com a lei que temos. Isso só é feito porque existem algumas previsões legais que conseguem inocentar os policiais em caso de confronto, de os policiais estarem se defendendo contra agressores armados. Isso deveria ser tomado como casos de exceção, e nunca se tornar a regra como se tornou. Não é aceitável que policiais matem numa sociedade que não tem pena de morte.
                Ainda que fosse uma sociedade com pena de morte, como alguns estados dos EUA, ainda assim não se pode aceitar o assassinato policial. Isso porque a pena de morte é um processo rigoroso, que se dá depois de um julgamento, com ampla defesa. Tirar a vida de alguém é algo muito sério e não se pode fazer sem pensar muito bem. Um policial estadunidense matar um cidadão estadunidense sem um julgamento é inaceitável, pois está passando por cima da ideia de Estado de Direito. A atuação de todos deve ser regida pela lei. De todo modo, eu pessoalmente não considero aceitável a pena de morte pelo simples motivo que a lei, os juízes, estão sujeitos a erro. E a história mostra que nos EUA já foram legalmente mortos alguns réus que depois se comprovou serem inocentes. Se um único inocente tiver sido condenado a morte em decorrência da lei, isso já torna essa lei inaceitável.
                Outro ponto ainda sobre a morte de um cidadão nas mãos de um policial é que isso fere os Direitos Humanos. Esses são um conjunto de princípios, valores, que fazem um papel como que de uma “lei” internacional. Não tem o peso de uma lei por não ter uma força de aplicação como as leis de cada governo, mas são princípios decididos em acordos entre vários países e que devem nortear as leis de países signatários. São princípios de respeito mínimo ao indivíduo humano que foram conquistados historicamente por pensadores liberais. Não é aceitável perante esses princípios que um policial assassine um cidadão sem um julgamento. Normalmente ações do tipo levam países com mais força internacionalmente a fazerem pressão e mesmo punir (com quebra de acordos ou sanções) os países que desrespeitaram os direitos humanos. Como no caso quem desrespeita é justamente o país com mais poder, isso não ocorrerá.

                Isso posto, penso que fica clara a necessidade de se opor a esses atos como inaceitáveis em nossas sociedades. Também daí se poderia decorrer a necessidade de se manifestar de algum modo contra eles (também é parte do nosso sistema democrático a liberdade de manifestação). Vai haver polêmica, porém, sobre a forma da manifestação.

Sobre as manifestações e suas motivações, e o contrato social

                Muitas pessoas parecem defender que o tipo de violência mostrada nessas manifestações nos EUA de algum modo lhes retira a legitimidade. Em especial viralizou a imagem do prédio da polícia local queimando, e a imagem dividiu opiniões. Muitos acolheram a imagem como uma vitória revolucionária. Outros tantos a reprovaram como selvageria, como violência excessiva. Qual o papel da violência na política?

                É importante antes de tudo acentuar que exercer o poder tem um papel fundador em qualquer tipo de política. Como diz a frase famosa de Weber, o Estado é o monopólio da violência legítima. Uma sociedade é um agrupamento de pessoas, e cada pessoa ou conjunto de pessoas tem a capacidade de exercer poder ou violência sobre outro grupo. O Estado organiza, gerencia essas pessoas, para que elas não exerçam esse poder de forma negativa, não prejudiquem os outros. Para isso temos leis, que limitam o quando um membro daquela sociedade pode agir sobre outro. A ideia é que restringindo um pouco a ação de cada um (em níveis razoáveis) o resultado é uma sociedade melhor pra todos em que ninguém seja prejudicado pelo poder do outro. Para conseguir restringir o poder dos cidadãos assim o Estado precisa ele mesmo ter uma concentração de poder, isso na forma de suas forças armadas e de suas forças policiais, que reforçam a lei. Aí entra a ideia de um contrato social, as pessoas pelos seus próprios interesses aceitam como num contrato implícito que um Estado exerça poder sobre todos para que todos tirem um benefício disso. Nem sempre funciona como o ideal, mas certamente estamos muito melhor com um Estado do que sem ele.
                 Uma política dentro de uma sociedade é também um conflito entre forças discordantes nessa mesma sociedade. Diversos partidos, movimentos, agrupamentos de pessoas, exercem poder, defendem uma posição política, e buscam que sua posição seja assumida pelo Estado. Numa sociedade democrática representativa, esse poder é exercido principalmente através do voto (mas não só por ele). E pessoas também se manifestam, seja divulgando suas ideias em algum veículo de mídia, seja protestando nas ruas. É natural que seja assim. Um protesto é um grupo exercendo seu poder, demonstrando esse poder publicamente e dizendo para um Estado “nós somos muitos, e demandamos isto, então nos conceda”. Toda demonstração de força e de números em um protesto é de algum modo uma ameaça de exercer o poder real, físico, é mostrar que se poderia fazê-lo se o quisessem. E a política é também gerenciar esses conflitos. É líderes dos governos negociando, reconhecendo “nós não queremos que vocês exerçam esse poder até as últimas consequências, será pior para todos, então podemos conceder para vocês essa parte de suas demandas”. Indiretamente é o poder desses diversos grupos de uma sociedade que em conjunto formam ela. E muitas vezes esses poderes estão em conflito direto, mesmo em nível popular. É só pensar no enfrentamento que tivemos recentemente em São Paulo de manifestantes bolsonaristas contra manifestantes “antifas”.

                Entretanto, disso não decorre que é legítimo eticamente que se exerça esse poder de modo violento. Afinal, as pessoas aceitaram um contrato social (ao aceitar viver numa sociedade), vivem de acordo com regras. Toda sociedade possui inclusive leis que vão regular sobre que formas de manifestações são aceitas ou não. E isso não é uma restrição injusta de um governo de direita, isso ocorre também (e principalmente) em governos de esquerda, como regimes autoritários de inclinação socialista que reprimem duramente manifestações contra o regime. Em sociedades democráticas do nosso modelo ocidental no geral é permitido a livre manifestação política (também com influência dos direitos humanos). Porém na maioria delas também não se permite que elas sejam violentas, que destruam patrimônio público ou privado. Esse tipo de ato retira manifestações do tipo da legalidade, porém, ela as torna erradas?

                A pegadinha nessa questão, é que estamos analisando as manifestações em um contexto de uma política democrática. Numa sociedade democrática, dentro da lei, não é aceitável e seria errado que uma manifestação democrática pertencente a essa sociedade destruísse um prédio público, um prédio da polícia. Porém essas manifestações não são manifestações inseridas no interior da legalidade desse Estado de Direito. Pelo contrário, as pautas, o motivo das manifestações, é desde o começo uma força alheia a esse Estado de Direito, marginalizado por ele, excluído por ele. Como vimos acima, quando um policial mata um homem negro ilegalmente, ele está agindo contra o Estado de Direito, o contrato social foi rompido. Quando isso se torna recorrente então estão agindo na sociedade forças organizadas contra o regime democrático estabelecido, e exercendo seu poder sobre uma população, que vai ser atacada, morta, e excluída daquele regime político, daquele sistema de leis. Os negros assassinados estão tendo negados seus direitos a um julgamento justo, a presunção de inocência, a sua integridade física, a sua vida mesmo. Não há mais Estado de Direito ali. Há apenas exercício de poder de um grupo contra o outro, sob a negligência do Estado. O Estado não chegou na vida dessas pessoas e então não faz sentido esperar que elas sigam as regras do Estado. E aí o que vai acontecer é uma reação natural apenas, você exerce poder contra um grupo grande, esse grupo grande vai se revoltar e exercer poder de volta, mostrar sua força, eles não devem mais nada ao contrato social (nesse contexto). De um ponto de vista ético, queimar o prédio da polícia não só é correto, como é pouco. É a defesa legítima de uma população que foi oprimida pelo poder exercido naquele prédio.
                Coloco aqui uma ressalva aqui de que estou analisando em termos ideais. É claro que sendo a polícia o braço forte do Estado ela tem relações mais complexas com ele e que não é tão simples como algo que se poderia dizer que as ações ilegais do policial não têm relação com o Estado. Talvez fique mais claro o que eu digo se pensar no Estado em termos ideais, no conjunto de leis e instituições, e não nele como o governo e os governantes específicos que estão no poder agora.

                Outra questão bem diferente de se é correto os manifestantes serem violentos contra o prédio da polícia é a questão se é correto os manifestantes serem violentos contra propriedade particular, com bens que pertencem a outras pessoas que nada tem a ver com os policiais, e que fazem parte da população assim como eles. Por conta dos bairros em que ocorrem, muitas vezes mercadinhos e pequenos comércios atacados e saqueados são mesmo de propriedade de outras pessoas negras, que igualmente são injustiçados pela polícia.
                Não existe justificação nenhuma para se fazer isso. É terrível, pode destruir a vida de pessoas, inclusive negras, e é canalizar a violência e a revolta em pessoas que não tem nada a ver com o ocorrido. Esse tipo de ato deve ser condenado e nunca aplaudido. Muitas pessoas nas redes sociais compartilham dizeres como “vocês se preocupam mais com a propriedade que com a vida perdida”. Mas nós não temos que escolher. Nós podemos igualmente nos posicionar energicamente contra a vida perdida e também contra o saque em pequenos comércios.
                Entretanto, devemos questionar se é isso que realmente caracteriza esses protestos. Num primeiro momento, logo após a morte de Floyd a confusão parece ter sido maior. As pessoas tomaram as ruas, houve saques. É possível, porém, separar os atos (ao menos para os analisar). Boa parte de uma multidão num protesto não sai de casa pensando “vou saquear nas ruas”. As pessoas estão com raiva, tomadas pela emoção dos acontecimentos. Com o início do protesto se forma uma grande aglomeração, o que sem uma boa organização é receita para alguns mais radicalizados começarem a agir de modo mais violento. Logo que alguém quebra uma vidraça de uma loja, numa multidão tão grande vai haver um oportunista que vai saquear, e aí quando pessoas veem alguém já saqueando primeiro sentem menos pudor em saquear também. Explico esse processo não para justificar, apenas para descrever. É possível conceber que um ato reprovável desse aconteceu em decorrência do protesto apenas e não como intenção inicial dele. De algum modo alguém poderia concluir que é uma “consequência infeliz” do protesto, e penso que alguns militantes coloquem desse modo. Eu pessoalmente acredito que existe sim responsabilidade na atuação política e que as pessoas no protesto são sim responsáveis, senão ativamente, ao menos por serem coniventes. Alguém que sai para um protesto assim deve estar pronto a reprimir outros e defender que o protesto seja feito de maneira ética. E isso também aconteceu.

Afinal, os protestos são violentos ou pacíficos?

                A grande questão que deveria orientar o debate na verdade é se os protestos seriam mesmo violentos ou se seriam pacíficos. E aí existe também uma diferença na interpretação preferida de quem está longo dos protestos originais nos EUA.

                No debate brasileiro sobre os protestos estadunidenses, dominou o tema de se são corretos protestos violentos. Enquanto críticos apontam que teria algum exagero em queimar prédios públicos e que seria absurdo os saques e depredação de pequenos comércios, de outro lado os defensores parecem em grande parte afirmar que tem que ser violento mesmo, e azar de quem tem comércio, que as vidas perdidas importam mais que isso.
                Ambos os lados parecem se pautar por uma informação falsa, de que os protestos são em maioria violentos. Os próprios manifestantes provavelmente iriam discordar dos brasileiros, inclusive dos que defendem a violência. O que as notícias mostram é que grande maioria dos protestos é pacífica [1]. Os manifestantes parecem querer se distanciar da imagem de que seu protesto é violento (claro, à exceção do momento de fúria da destruição do prédio da polícia, que é justificado). Por outro lado, quem quer nos EUA taxar os protestos de violentos são seus detratores. E mais do que isso, eles estão tentando ativamente tornar os protestos mais violentos.

                Existe uma série de denúncias de que grupos infiltrados nos protestos, geralmente brancos, estariam incitando violências. Diversos vídeos sobre isso estão sendo compartilhado em redes sociais. Um homem branco começa durante um protesto “e se nós virássemos aquele carro”, enquanto os manifestantes em volta o reprimem e dizem que não é isso que o povo negro faz. Um carro, com um grupo de brancos passa e entrega um tijolo para ser usado em depredação. Pior que isso, as próprias autoridades estariam tentando sabotar protestos. Um vídeo feito por manifestantes mostra uma pilha de tijolos “esquecidos” no trajeto do protesto, mesmo sem nenhuma obra, nenhum depósito, nada que justificasse aquilo, tijolos plantados em via pública. Em outro vídeo policiais são flagrados transportando tijolos. Essa narrativa de protestos violentos é fabricada justamente por quem não quer o sucesso dos protestos em defesa da vida dos negros. Então porque aqui no Brasil quem defende os protestos compra essa narrativa?

                Existe no Brasil uma certa glamourização da violência. No geral a esquerda brasileira não acompanhou os avanços democráticos da esquerda internacional, não aceitou o batismo da democracia. Existe uma crença recorrente entre muitos de que a única opção possível de mudança social é a violenta, a revolucionária. Natural que com essa mentalidade as pessoas tendam muito mais a louvar um prédio em chamas, e que os admiradores de violência vejam com bons olhos supostos saques e depredações violentos. Infelizmente isso diz muito sobre as falhas democráticas da nossa mentalidade política. Falta reconhecer que não é assim que os protestos estadunidenses querem ser vistos, e os respeitar enquanto tal. Falta também se perguntarem: é verdade que violência traga mudanças sociais?

Sobre a efetividade da violência em protestos

                Essa idolatria a violência é bastante preocupante, porque é uma tendência que pode ser desencadeada em violência real. O que é prejuízo para todos. Mas apenas na próxima seção falarei das consequências de protestos para a nossa realidade. Aqui, quero discutir de modo mais geral a efetividade dessa violência. Se ela de fato ocorrer, ela vai funcionar? Para informar sobre o tema trago o texto de um colega, Rafael Rodrigues, que levantou as diversas pesquisas feitas sobre o assunto [2]. Aqui eu vou me basear em maior parte neste texto.

                Antes disso, apenas quero colocar uma ressalva. É ainda uma discussão ética relevante a de se deveríamos usar a violência mesmo que ela tenha resultados. De um modo geral, existem duas correntes principais na ética enquanto estudo filosófico (além dessas principais também tem outras correntes). Do ponto de vista da corrente utilitarista – preocupada com as consequências dos atos – faria muito sentido o raciocínio de que se a violência é efetiva que então ela é ética. Mas é preciso também por essa visão consequencialista levar em conta as outras consequências desses atos para o bem-estar humano como um todo, e não apenas para o objetivo do protesto. Talvez (e isso é só suposição) em uma sociedade mais violenta os protestos funcionassem mais, mas ainda assim as pessoas tivessem menos bem-estar pela falta de segurança, ou outras consequências psicológicas da violência. Já para uma outra corrente da ética, a deontológica – preocupada com princípios que devem ser seguidos – já teríamos uma situação diferente. Mesmo que as consequências fossem as pretendidas, o ato violento seria reprovável por si só, por ferir princípios estabelecidos (como alguns princípios que evocamos acima: da democracia, do Estado de Direito, dos direitos humanos). Com isso em mente, de que a discussão ética é mais complexa, podemos então dar prosseguimento a questão da efetividade.

                O que se sabe com os estudos disponíveis, de modo geral, é que violência é inefetiva.  Os estudos mostram que guerrilhas armadas levam taxas de sucesso muito menores que manifestações pacíficas. As pacíficas chegam a ter duas vezes mais sucesso que as guerrilhas. Só por isso, já podemos considerar que é uma glamourização boba e irracional a do suposto revolucionário que vive em sociedades democráticas e que fala de resolver problemas pegando em armas.

                Porém existe meios termos nessa questão. Não se tratam apenas dos extremos de guerrilhas armadas e protestos totalmente pacíficos, mas alguns protestos mais pacíficos acabam recaindo em algum nível de violência desarmada. E é nesse caso que se encaixam os protestos dos EUA em questão. Nesse assunto a evidência disponível ainda é insuficiente. É apontado que a bibliografia não é muito robusta e que alguns estudos feitos têm sua metodologia questionada. Falta mais estudos para atestar a efetividade, sendo que alguns estudos vão dar resposta mais positiva enquanto outros mais negativa. O que poderíamos concluir de um ponto de vista ético é que se não temos certeza da efetividade da violência, e levando em conta que a violência tem um custo (tanto o dano psicológico e simbólico, o dano a democracia e às instituições, como o dano físico mesmo de alguém machucado e da propriedade destruída), então é errado tomar essas ações que possuem esses custos e que não tem a eficácia comprovada.

                Por fim os estudos também mostram que assassinar um ditador tem sim muitos efeitos para mudar o regime – embora não seja fácil assassinar e a maioria falhe – e que por outro lado assassinar um líder eleito democraticamente não tem esse mesmo resultado. Aqui também poderiam entrar diversos debates sobre se é correto recorrer assim ao assassinato, e esses debates foram muito feitos pela história, inclusive com alguns autores liberais defendendo o tiranicício. Mas esse não é o assunto aqui.

                Recomento muito a leitura do texto original em que os estudos são corretamente referidos. Eu apenas fiz um resumo das conclusões do texto. Não acreditem em mim simplesmente, vão verificar por si mesmos os estudos citados.

Sobre as consequências dos protestos

                Nesta seção final eu quero deixar algumas reflexões sobre as consequências que podemos esperar desses protestos. Principalmente aqui no caso do Brasil, que aderiu a seu modo ao movimento dos EUA.

                Antes porém, de um modo mais geral, falando sobre o protestos no contexto atual de pandemia. Não há o que ser discutido, é um fato que protestos que aglomeram pessoas em massa vão sim impactar em mais casos de covid-19, isso principalmente nos EUA em que os protestos são maiores do que aqui no Brasil.
                Há um custo muito grande também, principalmente no Brasil, que é o custo simbólico. Até então a extrema direita estava se manifestando e mostrando adesão a protestos, e isso estava sendo duramente criticado pela esquerda como algo prejudicial à saúde pública. Se torna então um custo muito grande – de sua própria coerência – a esquerda também aderir a protestos. E isso está sendo apontado por críticos. Algumas respostas podem ser dadas a isso. A primeira é de que as consequências daquilo que se combate valem a pena o custo. Por exemplo, a luta contra o assassinato recorrente de negros é algo a se pesar, mesmo contra mais casos da doença (já seria mais questionável se pautas mais gerais e menos propositivas como “pela democracia” valessem tanto a pena). Porém isso depende de se colocar na balança a efetividade desses protestos para trazer mudanças que diminuam os assassinatos, e também a quantidade de mortes potenciais causadas pela aglomeração. Outro argumento também, é que muitas pessoas que participaram do protesto já estavam expostas de todo modo, e por isso o contágio na pratica não vai mudar. Isso porque a quarentena como um todo teve uma adesão muito pequena no Brasil, e porque muitas pessoas que participam dos protestos se justificam dizendo que não possuem o privilégio de fazer quarentena, que precisam continuar trabalhando para ter renda, que pegam metro lotado todo dia. De fato, nessa situação em que tantos são forçados a se expor (pelas suas necessidades) não tem sentido cobrar que eles não participem também de protestos.

                 Porém existem também outros tipos de consequências. Algo que alguns analistas políticos apontam é que é do interesse do Bolsonaro o acirramento de protestos. A situação de Bolsonaro está cada vez pior, ele perdeu muito de seu apoio – e nessa semana até seu guru Olavo começou a pular do barco, deixando provavelmente muitos dos bolsonaristas na dúvida se quem “virou comunista” agora foi o Olavo ou o próprio Bolsonaro – e o presidente está com uma crise de proporções inéditas em seu colo. O caminho para ele é de derrocada, se a esquerda jogar bem. Porém, existe o risco de que justamente as manifestações que estamos tendo, principalmente se forem violentas, vão dar para o bolsonarismo um novo fôlego.
                Estávamos nas últimas semanas notificando cada vez mais bolsonaristas arrependidos, gente pulando do barco. Mas essas pessoas estão numa situação algo “vulnerável”, ninguém gosta de admitir que errou. Existe uma tática equivocada de jogar na cara dos arrependidos mesmo, apontar que eles erraram de modo imperdoável. Isso nunca convenceu ninguém. Pelo contrário, pressionar os arrependidos só vai fazer eles segurarem mais firme no bolsonarismo. A mudança, quando acontecer, será gradual. Ninguém dormirá bolsonarista e acordará convertido pela esquerda iluminada. Mas eles farão uma transição gradual e orgânica primeiro a figuras mais moderadas de uma direita democrática, alguma figura “menos ruim” como o Dória. Nesse momento em que as pessoas se arrependem, pressionar e fazer grandes protestos contra o bolsonarismo pode ter o efeito contrário de fazer que se agarrem psicologicamente a essa posição.
                Além disso, em um campo mais prático da política e das instituições, protestos – principalmente se violentos – podem dar ao Bolsonaro chance de bater de volta. Pode conseguir dar a ele a oportunidade de passar algum decreto que favoreça medidas autoritárias, sob justificativa de conter os excessos de manifestantes. Não vamos esquecer que ainda vivemos com a lei antiterrorismo aprovada no período da Dilma. E a coisa pode piorar. Um fenômeno social óbvio e que se pode esperar é o de que quando um grupo começa a ficar violento, os seus grupos adversários devolvem com mais violência. É o processo de escalada de violência. É uma tendência bastante previsível que se a esquerda escalar violência virá mais violência da direita, e parte dela pode vir através de decretos autoritários terríveis dando mais poderes para as forças a serviço do governo bolsonarista. É isso que queremos?

                Mas qual então a alternativa? Devemos apenas esperar pacientes enquanto Bolsonaro segue com seus desmandos? Essa não é uma questão fácil, e eu mesmo não tenho resposta. Ela tem me incomodado. Sinto que sim, não podemos simplesmente ficar calados enquanto o absurdo desse governo é cada vez maior. Enquanto tantas vidas estão sendo perdidas diariamente em consequência da irresponsabilidade do governo federal. É preciso sim resistir a isso do modo como for possível. Talvez a alternativa seja intensificar resistências moderadas. Buscando formas de manifestação que não envolvam o risco de quebrar quarentena – panelaços são uma tradição boa no Brasil, também manifestações em sacadas de prédios podem ser impactantes se bem organizadas, além de adesão a lives e manifestações virtuais – e para aqueles que não dispõe de todo modo do privilégio da quarentena, que se manifestem, mas de modo menos violento, o que pode ser mais efetivo. Se não pela questão da efetividade ou não da violência, ao menos no campo simbólico e no objetivo de não escalar a violência.

                Estamos realmente em um período de riscos, de riscos a nossa democracia, risco às instituições. O que está ruim pode piorar. É tempo de acima de tudo pensar bem nas formas de lutar contra isso, ter estratégia.

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[1] https://www.washingtonpost.com/health/huge-peaceful-protests-mark-anti-racism-demonstrations-around-the-globe/2020/06/06/da2b9bd0-a817-11ea-bb20-ebf0921f3bbd_story.html

[2] https://medium.com/@rafaelrodrigues_13723/afinal-de-contas-a-viol%C3%AAncia-%C3%A9-politicamente-eficaz-e64ee74ea255

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